quinta-feira, 28 de abril de 2011

O ABISMO ÉTICO

Melhor do que eu, muitos leitores estarão lembrados das bandeiras negras que em 1983 se ergueram, um pouco por todo o país, para sinalizar a fome. Tal como hoje, Portugal vivia tempos muitíssimo difíceis. Tal como hoje, o país recorrera, em desespero, à ajuda do FMI. Tal como hoje, o pior estava para vir. Mas as coincidências acabam aqui. Em 1983 o valor global da ajuda que o Fundo disponibilizou chegou ao montante (então) extraordinário de 650 milhões de dólares. Em 2011 estamos a discutir um resgate que pode chegar aos 100 mil milhões de euros! Infelizmente, espantosamente, o diabo nem são os números. Permitam-me uma inconfidência (devidamente autorizada) e já perceberão ao que venho. Estávamos, repito, em 1983. O Ministro das Finanças e do Plano era Ernâni Lopes. António de Almeida era o seu Secretário de Estado do Tesouro. Os dois homens tinham viajado até Washington para uma reunião com o FMI. O regresso a Lisboa implicava uma escala e uma pernoita em Nova Iorque. Ao chegar ao Hotel, o Ministro, seguramente com o ar grave, pausado e sério que punha nessas ocasiões, disse ao seu Secretário de Estado: «António, o momento é de austeridade. Mandei reservar um único quarto para os dois». O susto terá sido muito mas a verdade é que lá ficaram, cada qual na sua caminha bem entendido, a zelar durante o sono pelas depauperadas finanças pátrias.


Mas desenganem-se se julgam que a história acaba aqui. António de Almeida, mal refeito de uma noite espartana, ainda terá sonhado com um merecidíssimo passeio pela 5ª Avenida. Afinal de contas o avião de regresso a Lisboa estava marcado para o final da tarde e não havia reuniões agendadas durante todo o dia. Pura ilusão. O check-out fez-se, pontualmente, ao meio-dia. «Os tempos são de austeridade e a partir dessa hora cobram uma sobretaxa». Bem dito e melhor feito: o resto da tarde foi passado a trabalhar no banco de trás do automóvel que haveria de levar Ministro e Secretário de Estado ao Aeroporto. Devem ter comido umas sandes. Mas este gastronómico pormenor, em verdade vos digo, já sou eu que o invento.



Percebem onde quero chegar? Não julguem que é ao populismo basista que apelo. Não julguem que me vou aqui pôr a reclamar impensáveis sacrifícios nocturnos ao Dr. Teixeira dos Santos. Nem ao futuro Ministro das Finanças de Passos Coelho. Eu próprio, para ser sério, provavelmente não os faria. Mas isso não impede a minha inominável angústia. O facto é que é que, episódios como este, tornam ainda mais esmagadora a consciencialização do real abismo que separa as crises de 1983 e de 2011. O diabo, repito, nem são os números. O diabo são os líderes que vamos eleger para tratar deles. O diabo são os quadros mentais em que se movimentam. O diabo são os valores que os animam e que, colectivamente, vimos caucionando. O diabo é a falência ética em que estamos mergulhados. Nos mundos politico, económico e empresarial. É por aí, não tenham dúvidas, que a crise começou. É por aí que teremos, mais cedo que tarde, de começar a tratar o problema.


PS: “Economia, Moral e Politica” é o título do último livro de Vítor Bento. E imprescindível é dizer pouco.


Publicado na Visão em 28.4.2011

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